Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sábado, 30 de janeiro de 2010

Dar de Ombros?

Eu deveria aprender a ser mais flexível? De excessivamente reflexivo a inflexível e indignado, posso,  num pulo e sem que o perceba, erguer cercas entre mim e o mundo. Mas, como refletir, de acordo com certos princípios íntimos, sem se indignar com o que contrarie esses princípios? Como ser crítico sem se amargurar? Talvez os parâmetros utilizados por mim sejam por demais antiquados ou rígidos... Não, não sou intolerante, salvo com a ignorância presunçosa. Não quero impor nada, nadinha mesmo da minha visão de mundo, mesmo porque, como alimentadora de propósitos, talvez ela só interesse a mim. Gostaria, no entanto, de propor. Para propor é preciso se desinteressar de qualquer contenda ressentida, se distinguir sem tensão.

Por via das dúvidas, resolvi adotar um disjuntor mental: ao menor aumento de tensão ele desarma. É um simples dar de ombros para tudo aquilo que julgo desagradável ou estúpido, insípido ou fútil, errôneo ou inautêntico, mesmo em se tratando de coisas que desfrutem da aprovação da maioria dos meus semelhantes. Ou seja, não quero me tornar uma espécie de pregador renitente, vociferando inutilmente contra tudo que julga errado e não pode modificar. Não  poder modificar, aliás, faz toda a diferença. Prefiro ser um pregoeiro cool que opta por utilizar cartazes em vez de megafones. ´Trata-se, também,  de adotar um atitude irônica baseada numa espécie de ignorância higiênica que consiste em escolher o que não interessa saber. É preciso determinar a faixa pela qual queremos transitar, e não há nisso nenhum sentido elitista ou preconceituoso, apenas a afirmação da própria identidade através de uma escolha ativa; e digo ativa justamente para reforçar a distinção entre a atitude de receber alegremente tudo o que nos é imposto sob a forma de uma falsa afinidade, e a atitude oposta, de ir buscar aquilo que nos interessa, mesmo  a custa de alguma renúncia ou de um incomum esforço.

Talvez se pudesse dizer por analogia que a coisa se resume a uma questão dietética. Vivemos  numa época em que prevalece, depois de alguns anos de massiva catequese, uma visão médica ou bioquímica da dieta. Prega-se a moderação e a renúncia aos excessos representados por vilões como a gordura, o acúcar e o sal. Do ponto de vista nutricional a alimentação ideal consiste em abrir mão desses excessos. Mas se isso é verificado no que diz respeito ao corpo, com relação à mente e ao espírito ocorre justamente o contrário: é a ingestão dos excessos, dieta adiposa, gorda, super-calórica em informações de toda ordem, vertiginosamente pobre em nutrientes. Tudo é ingerido de maneira voraz e desordenada. O resultado é uma espécie de indigestão crônica, cujos principais sintomas são a vulgaridade, a insensibilidade, a repulsa à reflexão e, sobretudo, a falta de autenticidade. E isso tudo ainda é acompanhado por uma bulimia mental, o desagradável hábito de por para fora o que foi ingerido antes que qualquer coisa durável possa ser absorvida pelo espírito. E esses nutrientes a que me refiro não são outros senão certos valores humanistas. Oh, que desagradável ter de falar disso! Que coisa retrógrada. ´Pois é, basta fazer esse tipo de consideração, para ser o indivíduo tachado de retrógrado, preconceituoso, moralista, saudosista, e algo mais. É o que eu ouço aqui, de dentro dos limites do meu jardim... E já desarma o meu disjuntor mental, sacudo os ombros, os cães ladram... Pronto, estou mais para Alberto Caieiro do que para Álvaro de Campos...

              
                   Pieter Bruegel, o Velho - A parábola dos Cegos, 1568.     

Para ver outros trabalhos de Bruegel:  

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