Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Da Série "Livros que Amo": CARTAS PERSAS de Montesquieu


Um livro delicioso para heréticos que, como eu, acreditam que no fundo o homem permanece sempre igual a si mesmo, mudando apenas de cenário e de alguns costumes  
superficiais. Publicado em 1721, foi o primeiro sucesso de Montesquieu, notabilizado, como se sabe,  pelo livro "O espírito das Leis", no qual é exposta a famosa teoria da separação dos poderes. Escrito na forma epistolar, muito apreciada por escritores do século  XVIII,  Cartas Persas (Lettres Persanes) descreve as aventuras e impressões de um pequeno grupo de persas em viagem pela Europa, sobretudo Paris. Liderados por Usbek, eles se correspondem  entre si e com amigos que permaneceram na Pérsia.  É quanto basta como pretexto a Montesquieu para empreender uma crítica irreverente e ácida às instituições políticas, aos costumes e práticas sociais da Europa do Século XVIII. Nem mesmo a Igreja escapa, ou, talvez, principalmente ela. Estabelece-se, além disso, uma certa relativização da cultura e da religião a partir das posições dos muçulmanos, que com suas observações de "estrangeiros", aparentemente ingênuas, demonstram uma corrosiva lucidez. Não resisto a citar alguns trechos:

"O Papa é o chefe dos cristãos. Um velho ídolo que é incensado por hábito. Outrora era temível até para os próprios príncipes, pois os depunha tão facilmente como nossos magníficos sultões depõem os reis de Irimete e da Geórgia. Mas ninguém mais os teme. Ele se diz sucessor de um dos primeiros cristãos, chamado São Pedro, e é certamente uma rica sucessão, pois tem tesouros imensos e um grande país sob sua dominação."
(Carta 29, de Rica a Ibben).

"Mas o que me choca nesses belas mentes é que não se tornam úteis à sua pátria e dispersam seus talentos divertindo-se com coisas pueris. Por exemplo, quando cheguei em Paris, vi-os discutir acaloradamente sobre a questão mais ridícula que se possa imaginar; tratava-se da reputação de um antigo poeta grego, do qual, depois de dois mil anos, se ignora a pátria bem como a data de sua morte.. Os dois partidos afirmavam que era um poeta excelente. (...) mas entre esses distribuidores de reputação uns conseguiam se sobrepor aos outros, e essa era toda a discussão (...) eram proferidas, de parte e de outra, injúrias tão grosseiras, eram feitos gracejos tão amargos (...) Acredito que esse zelo tão delicado sobre a reputação dos mortos se incendiaria facilmente para defender aquela dos vivos! (...) Deus me livre de atrair algum dia a inimizade dos censores desse poeta, cuja permanência por dois mil anos no túmulo não conseguiu eliminar um ódio tão implacável! Hoje dão socos no ar, mas o que aconteceria se seu furor fosse provocado pela presença de um inimigo?"
(Carta 36, de Usbek a Redhi).

"Vi pessoas em quem a vrtude era tão natural que não se fazia sequer sentir; se apegavam a seu dever sem sujeitar-se a ele e o cumpriam como por instinto; longe de realçar com seu discursos suas raras qualidades, parece que elas não os havia atingido. São essas pessoas de que gosto; não esses homens virtuosos que parecem se surpreender de o serem e que consideram uma boa ação como um prodígio cujo relato deve deixar todos surpresos. Se a modéstia é uma virtude necessária àqueles a quem o céu concedeu grandes talentos, que se pode dizer desses insetos que ousam demonstrar um orgulho que haveria de desonrar os homens mais destacados?
Vejo em toda parte pessoas que falam sem cessar de si; suas conversas são um espelho impertinente; (...) fizeram de tudo; viram tudo; disseram tudo; pensaram tudo;são um modelo universal; (...) Oh, como o elogio é insípido quando reflete para o local de onde vem!"
(Carta 50, de Rica a ...)

"Outro dia estava num clube social onde me diverti bastante. Havia mulheres de todas as idades; uma de oitenta anos, uma de sessenta, uma de quarenta, acompanhada de uma sobrinha de vinte a vinte e dois anos.
Certo instinto impeliu-me a aproximar-me desta última e ela me disse ao ouvido: "Que dizes da minha tia que, na sua idade procura amantes e ainda pretende ser bonita? -- Está errada, respondi; é uma coisa que só convém a ti." Logo a seguir me encontrava ao lado da sua tia que me disse: "Que achas dessa mulher que tem pelo menos sessenta anos e que hoje passou mais de uma hora na toalete? -- É tempo perdido, disse-lhe; é preciso ter lá seus próprios encantos para poder sonhar." Fui até essa infeliz mulher de sessenta anos e lamentava seu comportamento em minha alma, quando ela me disse ao ouvido: "Há algo de mais ridículo? Vê essa mulher de oitenta anos e que usa fitas cor de fogo; quer mostrar-se jovem e consegue,  pois isso a aproxima da infância." Ah! Bom Deus!, dizia comigo mesmo, sempre haveremos de notar somente o ridículo nos outros?"
(Carta 52, de Rica a Usbek).

"Em Paris, meu caro Redhi, há muitas profissões.(...) Um número infinito de professores de línguas, de arte, de ciências ensina o que não sabe; e esse talento é realmente considerável, pois não é necessária muita inteligência para mostrar o que se sabe, mas dela se necessita em grau infinito para ensinar o que se ignora."
(Carta 58, de Rica a Redhi).

"Aqui todos se dedicam muito às ciências. Mas não sei se são realmente sábios. Aquele que duvida de tudo como filósofo nada ousa negar como teólogo; esse homem contraditório está sempre contente com ele, contanto que se reconheça as suas qualidades.
A ânsia da maioria dos franceses é ter espírito; e a ânsia daqueles que têm espírito é escrever livros.
Mas não há nada tão mal imaginado: a natureza parecia ter sabiamente disposto para que as tolices dos homens fossem passageiras, mas os livros as imortalizam."
(Carta 66, de Rica a ...). Meus Deus! Digo eu, ainda bem que os blogs podem ser deletados!

"Estava outro dia num grupo de pessoas e vi um homem muito contente com ele mesmo. Num quarto de hora resolveu três questões de moral, quatro problemas históricos e cinco pontos de física. Jamais havia visto um solucionador tão universal; seu espírito nunca foi invadido pela menor dúvida. Deixamos as ciências, passamos a falar das novidades do tempo: apresentou soluções para as novidades do tempo. Quis apanhá-lo e falei comigo mesmo: "Preciso entrar em meu forte; vou me refugiar em meu país." Falhei-lhe da Pérsia, mas mal lhe havia dito quatro palavras, já me havia desmentido duas vezes (...) Disse para mim mesmo: "Ah, meu Deus! Que homem é esse? Logo vai conhecer as ruas de Isfahan melhor do que eu." Tomei de imdediato minha decisão: calei, deixei-o falar e está ainda decidindo tudo.
(Carta 72, de Rica a Ibben). E Montesquieu não conheceu certos cronistas do nosso tempo....

" Acho surpreendentes os caprichos da moda entre os franceses. Esqueceram como estavam vestidos no último verão e ignoram ainda mais como estarão neste inverno, mas, de modo particular, não se poderia acreditar em quanto custa a um marido para deixar sua mulher na moda.
De que me serviria dar-te uma descrição exata de seu vestuário e de seus adornos? Uma nova moda viria destruir toda a minha obra como aquela de seus operários e, antes que tivesses recebido a minha carta, tudo já teria mudado. Uma mulher que deixa Paris para passar seis meses no campo retorna tão antiquada como se tivesse passado fora trinta anos."
(Carta 99, de Rica a Redhi) Vemos que o que quer que alimente o nosso consumismo não é próprio apenas de nossa época...

"O grande erro em que incorrem os jornalistas é que só falam de livros novos (...) Parece-me que, atá que alguém tenha lido todos os livros antigos, não tem nenhum motivo para dar preferência aos novos. Mas desde que se impõem a lei de falar das obras ainda quentes, recém-saídas da forja, se impõem outra, que é a de serem muito aborrecidos. Só cuidam de criticat os livros de que fazem extratos, por qualquer razão que seja; com efeito, qual homem é tão ousado para querer angariar dez ou doze inimigos todos os meses?"
(Carta 108, de Usbek a ....).

"A universidade de Paris é a filha mais velha dos reis da França, e muito velha, pois tem mais de novecentos anos; por isso de vez em quando sonha. Contaram-me que ela teve, há algum tempo, uma grande discussão com alguns doutores por causa da letra Q que a universidade queria que fosse pronunciada como K. (...) Era realmente bonito ver os dois organismos mais respeitáveis da Europa ocupados em decidir sobre a sorte de uma letra do alfabeto! Parece-me, meu caro, que as cabeças dos maiores homens se reduzem quando estão reunidas e que onde há mais sábios, há menos sabedoria. Os grandes organismo se apegam sempre tão fortemente às minúcias, aos usos inúteis, que o essencial sempre vem somente em segundo plano."
(Carta 109, de Rica a ...).
* Tradução de Antonio Geraldo da Silva, Editora Escala.

Montesquieu

2 comentários:

  1. Não sou uma intelectual, mas adoro ler escritos inteligentes. Não conhecia a obra, tinha apenas "ouvido falar" de Montesquieu.Bom saber que escritos como esses não desaparecem, um dia, por qualquer motivo, são citados e aí nos levam a compreender que mudam os tempos mas o homem é o mesmo na sua sensibilidade, inteligência, estupidez, ignorância.





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