Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 31 de janeiro de 2010

Um Poema de Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem
Nas mãos o óbulo último,

Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que tronos te querem dar
Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra

Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores, mas larga-as
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.




"IN MY CRAFT OR SULLEN ART", de Dylan Thomas, em Duas Traduções:

IN MY CRAFT OR SULLEN ART

                                           Dylan Thomas

In my craft or sullen art
Exercised in the still night
When only the moon rages
And the lovers lie abed
With all their griefs in their arms,
I labor by singing light
Not for ambition or bread
Or the strut and trade of charms
On the ivory stages
But for the common wages
Of their most secret heart.

Not for the proud man apart
From the raging moon I write
On these spindrift pages
Nor for the towering dead
With their nightingales and psalms
But for the lovers, their arms
Round the griefs of the ages,
Who pay no praise or wages
Nor heed my craft or art.


Na tradução de Ivan Junqueira:

EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou por pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.


Na tradução de Ivo Barroso:

NO MEU OFÍCIO OU ARTE AMARGA

No meu ofício ou arte amarga
Que à noite tarda é exercido
Quando alucina só a lua
E dormem lassos os amantes
Com as dores todas entre os braços,
É que trabalho à luz cantante
Não pela glória ou pelo pão,
Desfile ou feira de fascínios
Por sobre palcos de marfim,
Mas pela paga mais afim
De seus secretos corações!

Não para alguém altivo à parte
Da lua irada é que eu escrevo
Os respingados destas páginas
Nem pelos mortos presumidos
Cheios de salmo e rouxinóis.
Mas para amantes cujos braços
Têm os cansaços das idades
Que não me dão louvor nem paga
Nem prezam meu ofício ou arte.


" O CORVO" de Edgar Allan Poe em tradução de Fernando Pessoa

O CORVO

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta — ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta — ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

sábado, 30 de janeiro de 2010

Quatro Traduções do Poema "The Tyger" de William Blake

THE TYGER

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand, dare seize the fire?

And what shoulder & what art,
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand & what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what the grasp
Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spears,
And water'd heaven with their tears,
Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?


Tradução de Augusto de Campos:

O TYGRE

Tygre! Tygre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?

Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chamma?
Que mão colheu esta flamma?

Que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração
de aço, que cor, que ação?

Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo? Que fornalha
o moldou? Que mão, que garra
seu terror mortal amarra?

Quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?

Tygre! Tygre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?



Tradução de José Paulo Paes:

O TYGRE

Tygre, Tygre, viva chama
Que as florestas de noite inflama,
Que olho ou mão imortal podia
Traçar-te a horrível simetria?

Em que abismo ou céu longe ardeu
O fogo dos olhos teus?
Com que asas atreveu ao vôo?
Que mão ousou pegar o fogo?

Que arte & braço pôde então
Torcer-te as fibras do coração?
Quando ele já estava batendo,
Que mão & que pés horrendos?

Que cadeia? que martelo,
Que fornalha teve o teu cérebro?
Que bigorna? que tenaz
Pegou-te os horrores mortais?

Quando os astros alancearam
O céu e em pranto o banharam,
Sorriu ele ao ver seu feito?
Fez-te quem fez o Cordeiro?

Tygre, Tygre, viva chama
Que as florestas da noite inflama,
Que olho ou mão imortal ousaria
Traçar-te a horrível simetria?

Tradução de Vasco Graça Moura (Portugal):

tigre, tigre, chama pura
nas brenhas da noite escura,
que olho ou mão imortal cria
tua terrível simetria?

de que abismo ou céu distante
vem tal fogo coruscante?
que asas ousa nesse jogo?
e que mão se atreve ao fogo?

que ombro & arte te armarão
fibra a fibra o coração?
e ao bater ele no que és,
que mão terrível? que pés?

e que martelo? que torno?
e o teu cérebro em que forno?
que bigorna? que tenaz
pro terror mortal que traz?

quando os astros lançam dardos
e seu choro os céus põem pardos,
vendo a obra ele sorri?
fez o anho e fez-te a ti?

tigre, tigre, chama pura
nas brenhas da noite escura,
que olho ou mão imortal cria
tua terrível simetria?

Tradução de Alberto Marsicano e John Milton:

O TIGRE

Tigre! Tigre! Luz brilhante
nas florestas da noite,
Que olho ou mão imortal ousaria
Criar tua terrível simetria?

Em que céus ou abismos
Flamejou o fogo de teus olhos?
Sobre que asas ousou se alçar?
Que mão ousou esse fogo tomar?

E que ombro & que saber
Foram as fibras do teu coração torcer?
E o primeiro pulso de teu coração
Que pé ou terrível mão?

Que martelo, que corrente?
Que forno forjou tua mente?
Que bigorna? Que punho magistral
Captou teu terror mortal?

Quando os astros arrojam seus raios,
cobrindo de lágrimas os céus,
Sorriu ao sua obra contemplar?
Quem te criou o cordeiro foi criar?

Tigre! Tigre! Luz brilhante
Nas florestas da noite,
Que olho ou mão imortal ousaria
Criar tua rerrível simetria?

Folha original de Blake, 1757.

Convém perguntar qual a melhor tradução?

Mais sobre Blake: The William Blake Archive

Dar de Ombros?

Eu deveria aprender a ser mais flexível? De excessivamente reflexivo a inflexível e indignado, posso,  num pulo e sem que o perceba, erguer cercas entre mim e o mundo. Mas, como refletir, de acordo com certos princípios íntimos, sem se indignar com o que contrarie esses princípios? Como ser crítico sem se amargurar? Talvez os parâmetros utilizados por mim sejam por demais antiquados ou rígidos... Não, não sou intolerante, salvo com a ignorância presunçosa. Não quero impor nada, nadinha mesmo da minha visão de mundo, mesmo porque, como alimentadora de propósitos, talvez ela só interesse a mim. Gostaria, no entanto, de propor. Para propor é preciso se desinteressar de qualquer contenda ressentida, se distinguir sem tensão.

Por via das dúvidas, resolvi adotar um disjuntor mental: ao menor aumento de tensão ele desarma. É um simples dar de ombros para tudo aquilo que julgo desagradável ou estúpido, insípido ou fútil, errôneo ou inautêntico, mesmo em se tratando de coisas que desfrutem da aprovação da maioria dos meus semelhantes. Ou seja, não quero me tornar uma espécie de pregador renitente, vociferando inutilmente contra tudo que julga errado e não pode modificar. Não  poder modificar, aliás, faz toda a diferença. Prefiro ser um pregoeiro cool que opta por utilizar cartazes em vez de megafones. ´Trata-se, também,  de adotar um atitude irônica baseada numa espécie de ignorância higiênica que consiste em escolher o que não interessa saber. É preciso determinar a faixa pela qual queremos transitar, e não há nisso nenhum sentido elitista ou preconceituoso, apenas a afirmação da própria identidade através de uma escolha ativa; e digo ativa justamente para reforçar a distinção entre a atitude de receber alegremente tudo o que nos é imposto sob a forma de uma falsa afinidade, e a atitude oposta, de ir buscar aquilo que nos interessa, mesmo  a custa de alguma renúncia ou de um incomum esforço.

Talvez se pudesse dizer por analogia que a coisa se resume a uma questão dietética. Vivemos  numa época em que prevalece, depois de alguns anos de massiva catequese, uma visão médica ou bioquímica da dieta. Prega-se a moderação e a renúncia aos excessos representados por vilões como a gordura, o acúcar e o sal. Do ponto de vista nutricional a alimentação ideal consiste em abrir mão desses excessos. Mas se isso é verificado no que diz respeito ao corpo, com relação à mente e ao espírito ocorre justamente o contrário: é a ingestão dos excessos, dieta adiposa, gorda, super-calórica em informações de toda ordem, vertiginosamente pobre em nutrientes. Tudo é ingerido de maneira voraz e desordenada. O resultado é uma espécie de indigestão crônica, cujos principais sintomas são a vulgaridade, a insensibilidade, a repulsa à reflexão e, sobretudo, a falta de autenticidade. E isso tudo ainda é acompanhado por uma bulimia mental, o desagradável hábito de por para fora o que foi ingerido antes que qualquer coisa durável possa ser absorvida pelo espírito. E esses nutrientes a que me refiro não são outros senão certos valores humanistas. Oh, que desagradável ter de falar disso! Que coisa retrógrada. ´Pois é, basta fazer esse tipo de consideração, para ser o indivíduo tachado de retrógrado, preconceituoso, moralista, saudosista, e algo mais. É o que eu ouço aqui, de dentro dos limites do meu jardim... E já desarma o meu disjuntor mental, sacudo os ombros, os cães ladram... Pronto, estou mais para Alberto Caieiro do que para Álvaro de Campos...

              
                   Pieter Bruegel, o Velho - A parábola dos Cegos, 1568.     

Para ver outros trabalhos de Bruegel:  

"Poesia Matemática" em Vídeo de Alunos do Ensino Médio

A primeira vez que vi este vídeo foi no De Rerum Natura. Trata-se de uma versão bem criativa para a extraordinária "Poesia Matemática" de Millôr Fernandes, versão essa realizada por alunos do ensino médio de um colégio de Feira de Santana, Bahia, sob orientação do professor Victor Venas. Pesquisando sobre o professor, descobri tratar-se de profissional premiado que desenvolve um projeto, "Educação para Mídias e Artes", trabalha também com videoarte, tendo tido participações em diversos Salões. Mais sobre ele nos sites GRUPO X, e ARTE NA ESCOLA



POESIA MATEMÁTICA


                                 Millôr Fernandes


Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.





sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Cow Parade

As vacas tomaram a cidade de São Paulo. Desde 22 de janeiro vários pontos da cidade foram ocupados pelas vaquinhas customizadas do evento Cow Parade. São cerca de 90 esculturas de vacas realizadas em fibra de vidro e decoradas, de forma criativa e bem-humorada, por artistas plásticos, designers e arquitetos locais. O evento, criado no final da década de noventa, na Suíça, já foi realizado em quase 60 cidades do mundo,e pretende unir estratégia de democratização da arte, publicidade e responsabilidade social, já que, ao final, as esculturas são leiloadas, sendo a renda obtida, doada à instituições beneficentes. Aqui no Brasil três cidades já sediaram a Cow Parade além de SãoPaulo: Curitiba, Rio e Belo Horizonte. Entre os exemplares expostos agora, chama atenção a impagável e crítica vaquinha COWgestionamento, toda recoberta por carrinhos em fila.


Você pode ver outras imagens da coleção aqui:http://www.flickr.com/photos/tags/cowparadesaopaulo2010/


No site oficial você encontra a Cow Gallery, com todas as vacas produzidas em todas as cidades: http://www.cowparade.com/WorldwideGallery.php

Mas, na verdade, o que motivou este texto foi um paralelo curioso, do qual me lembrei e tratei de pesquisar. Em 2009, em João Pessoa, durante o festival de cinema Cineport, foi realizada a Bode Parade, diretamente inspirada na cosmopolita Cow Parade, e homenageando um animal emblemático do Nordeste. Embora menor, o evento pessoense não ficou atrás em termos de criatividade, ao que parece, e lá, também, os trabalhos foram leiloadas em benefício de obras sociais. A criativa analogia merece ser lembrada.


Infelizmente os registros na Internet são escassos, mas eu consegui informações no site Babel da Artes. Clique aqui para ver mais alguns bodes: http://babeldasartes.wordpress.com/2009/05/07/cow-parade-nordestino-e-bode-arte/

Abaixo, um vídeo sobre a Cow Parade em Madri, 2009:



quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Sísifo

                                                        final 
                       antes da queda 
                     antes da queda 
                   ele alcançará
                 tu alcançarás
               eu alcançarei  
             ele alcançará
           tu alcançarás
         eu alcançarei   
       ele alcançará
     tu alcançarás
  eu alcançarei                      afinal

Dois Poemas

A SOLIDÃO

A solidão ocorre
quando a consciência 
se corporifica 
e se arraiga
no espaço,
erguendo-se
em totem
ou torre
sem pavimentos
medianos:
coluna sem vértebras,
de fuste liso
e capitel ausente.


Ocorre a solidão
quando o ar
se adensa em lama
que adere ao corpo
e asfixia o gesto.


Quando a voz 
lacrimeja
saliva grossa,
quando os olhos
se oxidam ao sol,
quando os ouvidos
enrolam
o novelo dos ecos,
a solidão ocorre.


Quando retornam
as palavras, 
como se fossem
insetos atraídos
pela escuridão,
criando órbitas
em torno
de um núcleo frio,
a solidão ocorre.


VISÍVEL


Enfim, chega um dia
em que a alma
se enclausura na face:
forma-se um casulo
rígido
do qual
nenhuma borboleta
nasce.

Tarde

Amor moroso
como o oscilar
de uma avenca
ao vento morno
de uma tarde ávida
por ternuras gestuais
e
 palavras cantadas.

Andante

Serenidade ao redor...
Uma carícia extensa
inibe rude energia.


quasi Andante com moto


Uma onda exausta e fria
cobre nossos pés
contra a tepidez da areia.


Na sua face,
esfinge ensolarada,
descuidada de enigmas,
brilham cristais de sal.

Pórticos

{  passagens para  }


o norte


o noroeste         o nordeste


o oeste                         o leste


o sudoeste      o sudeste


o sul


para os pontos infinitos
para ilhas claras
para valas negras
para ocultas celas


passagens para invadir
passagens para evadir-me


pórticos
de grande porte
para o abandono
da esperança


pórticos
para o êxito
o exílio
[exit]
[.]

Secção

Quantos sotaques
o meu povo tem?
Na fala vária
se articulam
as vértebras
de uma serpente
plural.


Mas um cutelo
vil
a secciona.

Clareza

Em horas de delírio
tudo em mim se concentra
como se eu fosse a tônica
a que toda frase musical
retorna.


( Decantadas as coisas
que se misturam
à escuridão,
repousará no fundo
a sua obviedade. )


Eis o teor das minhas alucinações:
suponho ver todas as coisas
bastando-se a si mesmas...
Tão desprovidas de metáforas!
Tão refratárias à indagações!
Delirante, 
essa clareza me será o bastante..

Confiteor

Meus sonhos se hospedam
nas prateleiras superiores
como estatuetas de gesso.

Aguardo que um desses abutres
desperte de seu sono engessado
e venha subtrair um pedaço
ao meu fígado amargo.

Meus projetos são abstratos
como mapas rodoviários
guardados num gabinete.

Sou perito em desembaçar vidraças
para flagrar o silêncio expandido
no interior das ermidas.

O que vejo nada me informa.
O que adivinho é tão obsoleto
quanto o ritual do confiteor.

Tento fazer corresponder
a cada objeto um só nome,
a cada sentimento uma efígie;
mas tudo desdenha da minha ciência.

Que outro tolo proponha amanhã
a hermenêutica dos epitáfios!
Quanto a mim, hei de me matar.
Não a este corpo ainda voraz,
Mas a personagem que só age
à mercê das neutras rubricas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Terremoto no Haiti

Chocou-me profundamente o terremoto no Haiti, como deve ter chocado a qualquer ser humano, mesmo ao mais insensível. Todo terremoto é de uma brutalidade assustadora, mas esse nos revela o extremo de uma tragédia, pois devasta um país já antes aviltado pela pobreza, cujo povo já carecia das mínimas condições de existência e que pelas próprias forças não têm a mínima possibilidade de reconstrução, estando a depender da nem sempre desinteressada ajuda alheia. Parece de uma ironia absurda, de modo a impossibilitar qualquer visão amena e otimista da vida, a insuflar reflexões desalentadoras, a jogar a última pá de cal sobre os últimos resquícios do otimismo em mim. Um desses momentos em que arte, poesia e outros valores com que pretendo lidar parecem não ter a mínima relevância.

Não há sequer como imaginar o que aquele povo está passando, e a mídia deveria ter um cuidado quase religioso ao tratar do assunto, evitando demonstrar sua sacrílega presunção de onisciência. É um fato em torno do qual se deve antes perguntar do que afirmar qualquer coisa. Como reconstruir aquilo tudo? Quanto não demorará para se chegar a um ponto que já não era quase nada. Cheguei a pensar que se há uma situação em que um país deveria se declarar extinto e decretar uma diáspora de seu povo, seria essa a ocasião. Um comovido exagero da minha parte, é claro.

No mesmo dia lembrei de Voltaire, que escreveu o seu CÂNDIDO, libelo contra o otimismo, sob o impacto provocado em sua consciência pelo terremoto de Lisboa. No dia seguinte, o Arnaldo Jabor falou dele, fazendo votos de que pelo menos o terremoto do Haiti possa provocar mudanças no mundo tão significativas quanto aquelas que o terremoto de Lisboa desencadeou ao influenciar Voltaire e o Iluminismo. Será?
Um jornal do Rio estampou em capa inteira uma foto chocante de um haitiano segurando o filho morto, não mais que um contraste hipócrita com as bobagens e superficialidades que costumam rechear a maior parte do conteúdo de seus cadernos.

O povo do Haiti agora é como um Jó coletivo a ter a sua fé testada... Fé?

Três Poemas Curtos

ÁRIDO


Almejo uma aridez primitiva,
de campina filamentosa
onde os sonhos se arvorem
           concretos,
surgindo, críveis, do chão
(flores               espinhos)
com brutal estabilidade. 




OUTRA BELEZA


Que as minhas mãos
lutem com a argila
como um predador 
com sua presa:


o que resultar será
instintividade pura
ou brutal beleza.




PRESSÃO


Numa caldeira exígua
os desejos se chocam
em ebulição.
A alma escapa
pela válvula, 
vapor que nada é
senão impressão.

Ser

Ser eu mesmo é afirmar
involuntariamente.

Flutuam-me nas veias lacradas
palavras não pronunciadas,
anticorpos resistentes.

Ser eu mesmo é sangrar
semanticamente.

Coisas

Todas as coisas nos respondem.
Como oráculos
ecoam
ou ricocheteiam
o que lhes atiramos.

Dos semelhantes
recebemos enigmas
feitos do medo
que lhes emprestamos.

Das coisas inorgânicas,
um silêncio argiloso
ao qual a pergunta modela
e conforma.

Antes

Uma flor não nasceu
do escorpião esmagado.
A poeira sobre os livros
não asfixiou as palavras.


Muitos acidentes as rugas não evocaram!
Tantos vocábulos a boca modulou!
Ah!::::
os cantos incômodos:
os endereços mudados:
os envelopes-arcanos:
teu nome-remetente:
meu nome-destinatário.


Os galhos,
os restos,
o silêncio
e
as goteiras
em
fila.

Dúvida

Na impossibilidade
de aferir, ferida é
uma corda sensível,
sem  sabermos
se o sentido
transcende 
quem sente.

Trânsito

Como parto de mim
para o restante,
esse ato de pássaro,
vôo em arco
entre dois pontos?


Como parto de mim?
Sem mapa e estrada?
Sem fio-memória
num labirinto aéreo
sem entrada?


Como parte de mim
a minha verdade?
Como entrave?
Soma que se multiplica
ou divisão sem inconsciente?


Como parte de mim
meu eu que se reifica?
Como parte do todo
que não participa
de mim?


Como parto para o mundo?
Num ciclo de gerúndios?
Parte-se o mundo
se me reparto em dois,
um, precipício direto,
outro, trânsito e afeto?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A Visão de Si Mesmo e do Outro

Quem há de negar que, em geral, nos preocupamos em excesso com o que os outros pensam de nós? Uma das preocupações mais estúpidas da vida, pois na maior parte das situações  o julgamento alheio não muda um milímetro do que somos ou sequer ameaça nossas pretensões, mas nem por isso nos livramos dessa ansiedade social que no mais das vezes assume dimensões fantasmagóricas. Costumamos dotar os outros das virtudes e poderes dos quais nos julgamos desprovidos. Por isso mesmo, admiramos como libertária a superação desse temor da desaprovação social, dentro da linha do "só é realmente livre quem não tem medo do ridículo", aqueles que subestimam as convenções, individualistas excêntricos, ou, por outro lado, cultuamos as figuras perfeitamente integradas que parecem dominar ao extremo as convenções, a ponto de aparentarem se sobreporem a elas.
Há momentos na literatura em que essa questão da visão de si mesmo e do outro é posta, a meu ver, de maneira paradigmática, direta e descritiva. Eu destacaria quatro desses momentos que me impressionam particularmente. Primeiro no WERTHER, de Goethe, quando o jovem desiludido vai servir como secretário junto a um embaixador. Werther observa que:
"Nossa imaginação, levada por sua própria natureza a exaltar-se, e, ainda, excitada pelas figuras quiméricas que lhe oferece a poesia, dá corpo a uma escala de seres onde ocupamos sempre um lugar ínfimo. Tudo quanto se acha fora de nós parece mais belo, e todos os homens mais perfeitos do que nós. E isto é natural porque sentimos demasiado as nossas imperfeições e os outros sempre parecem possuir precisamente aquilo que nos falta. Em consequência, nós lhes acrescentamos tudo quanto está em nós mesmos e, para coroar a obra, concedemos-lhe também certa facilidade miraculosa que exclui toda idéia de esforço. E eis esse bem-aventurado mortal convertido num  conjunto de perfeições por nós mesmos criadas".

Segundo, um famoso poema de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) no qual encontramos uma percepção diferente da encontrada na citação acima, já que o sujeito vê o outro como uma ostentação ilusória de  falsas  qualidades que ironicamente ele, sujeito, nega a si próprio, acentuando sua própria fraqueza humana para revelar a hipocrisia do outro. O poema é todo uma crítica às convenções sociais que nos levam à dissimulação através do uso de máscaras que ocultam nossas fragilidades, contradições e vilezas:

POEMA EM LINHA RETA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo e absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes da etiqueta,
Que tenho sido grotesco,  mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,,
Que quando não tenho calado tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco; 
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe -- todos eles príncipes -- na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!


Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado, 
Podem ter sido traídos -- mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
                                           
Eis um poema que nos faz pensar, não? Atente-se para os versos 23 e 24, em que o poeta nos diz que até confessamos com facilidade um pecado e uma violência, mas jamais uma infâmia ou uma covardia, pois a violência pode ser associada à coragem e o pecado à desenvoltura e à ousadia, como no caso do adolescente que prefere vulgarizar a própria sexualidade a ter que confessar-se virgem. O verso "Arre, estou farto de semideuses", revela a tendência do outro a se mitificar diante de nós.

( Roy Lichtenstein - Sweet Dreams, Baby!)
   
O terceiro momento é extraído do ensaio Da Presunção de Montaigne (sim, ele novamente), onde ele se confessa carente das qualidades que um homem incomum deveria ter:

"Há outro tipo de glória que consiste em termos opinião demasiado boa de nós mesmos. Essa afeição imprudente faz com que nos representemos aos nossos próprios olhos diferentes do que somos. E atua como a paixão amorosa, que empresta ao objeto do seu amor a beleza e a graça, turvando e alterando a razão de quem ama e fazendo da pessoa amada um ser muito mais perfeito do que é. 
Não quero, entretanto, que um homem se despreze ou se estime mais do que vale. Nosso julgamento deve conservar sua retidão e é justo que nisso, como em outras coisas, veja em que consiste a verdade. Se é César, que se considere corajosamente o maior guerreiro do mundo. Tudo é convenção;as convenções guiam-nos e nos levam a menoscabar a realidade. Penduramo-nos nos galhos e largamos o tronco, que é essencial.(...)
Sou vítima de uma erro sentimental que me desagrada e se me afigura iníquo e ainda mais importuno. Tento corrigi-lo, mas não posso libertar-me: subestimo o valor das coisas que possuo e, ao contrário, superavalio as que não me pertencem ou se acham fora do meu alcance.(...) Mais ainda, não tenho consciência do que eu possa valer; admiro a segurança que todos exibem e confiança que têm em si, enquanto não há nada que eu imagine saber nem que eu pense poder executar. Quando me proponho a fazer tal ou qual coisa, não tenho de antemão a noção exata dos meios de que posso dispor para obter êxito e somente percebo o que está em minhas forças pelo resultado. Duvido de mim como dos outros. Disso decorre que quando faço um trabalho merecedor de louvores, atribuo-o antes à sorte do que ao meu talento, tanto mais quanto só o acaso me guia, e o temor. (...) Não sei agradar, nem divertir, nem interessar: a melhor história do mundo, dita por mim, perde a graça e o encanto. Só sei falar quando me sinto tomado pelo assunto (...) Na dança, no jogo de bola, na luta, revelei-me sempre fracalhão e vulgar. Era absolutamente nulo na natação, na esgrima, na acrobacia e no salto. Sou tão desajeitado com as mãos que mal consigo reler o que escrevo, a ponto de preferir escrever de novo a ter que decifrar as minhas garatujas. (...) As próprias qualidades de que posso jactar-me são inúteis neste século: a simplicidade dos meus hábitos seria tachadas de covardia e fraqueza; minha fé e meus escrúpulos de superstição; minha franqueza e liberdade de atitude seriam julgadas importunas e ousadas. (...) Quanto a essa nova virtude do artifício e da dissimulação, tão apreciadas nestas eras, odeio-a supremamente. (...) É característico da covardia e do servilhismo, e predispõe à perfídia fantasiar-se e mascarar-se e não se mostrar como se é. Acostumados que andam todos a exprimirem sentimentos falsos, não lhes constitui caso de consciência desmentirem as palavras pelos atos. (...) Não há como dizer sempre tudo; seria tolice; mas o que se diz deve ser o que se pensa."
E por aí prossegue Montaigne na listagem de suas deficiências, tão extensa que não há como reproduzi-la aqui. Quem quiser se aprofundar pode ler o capítulo XVII de seus ENSAIOS. Presumindo a sinceridade de Montaigne, ao ler da primeira vez esse texto, eu me senti gratificado: se ele, que considero tão elevado, se descrevia assim, então não estarei eu totalmente perdido.
Por fim, o quarto momento, um poema de Manuel Bandeira no qual ele se retrata com uma cândida ironia:


AUTO-RETRATO

Provinciano que nunca soube                                                   
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado ( engoliu um dia


Um piano, mas o teclado
Ficou de fora ); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
Em matéria de profissão


segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A Construção do Outro e a Visão de Nós Mesmos.

Sempre considerei que no fundo os sujeitos são relativamente impermeáveis. Estamos integrados de maneira orgânica ao ambiente natural, porém, mentalmente distanciados dele, da mesma forma que uma câmera está distante de seu objeto. Registramos,para posteriormente interpretar, editar, criar narrativas. Nossos instrumentos sensórios e cognitivos, tudo o que denominamos como linguagem, essa mediação objetiva entre os indivíduos, não nos habilita a saber o que de fato o outro é em sua total extensão, pois só lidamos com segmentos intervalados desse outro. Não é possível extrair do outro sua verdade, porque é provável que, como eu, ele não a conheça como verdade de si mesmo.Resta-nos, então, ordenar uma visão do outro a partir de evidências parciais e mediações sociais; preenchemos os espaços vazios dessa ordenação com elementos que respondem aos nossos medos e expectativas. A cultura é o terreno comum onde se depositam os produtos objetivos dessa intersubjetividade falha e parcial; dela toda subjetividade está ausente, mas é também dela que retiramos modelos e formatos que aplicamos na construção do outro e de nós mesmos.

Sobre os Diários, os Atuns, as Sardinhas e as Idéias

Em diferentes períodos da minha vida me decidi a iniciar um diário; mas por motivos que nunca me pareceram claros, essa intenção jamais ultrapassou a redação das primeiras páginas. Seria falta do que relatar ou sobre o que refletir? Não creio. Talvez deva culpar uma certa indolência ou minha tendência de não levar adiante muito dos projetos a que me proponho por falta, diriam alguns, de disciplina.
Pois parece que um diário requer dedicação disciplinada e assídua. Mas por que? Teremos sempre algo digno de ser mencionado a respeito de todos os dias de nossas vidas? Valerá a pena registrar qualquer ninharia? Mas, afinal, a quem se destina um diário senão ao seu próprio autor? Pretender mais do que isso seria falsear, ou pecar por presunção, adotando um tom confessional, digamos, moderado. Por outro lado,por que escrever sobre algo que, a rigor, só deveria interessar a nós mesmos se já o trazemos em estado bruto dentro de nós? Toda escrita não é uma forma de extroversão? Neste ponto eu não resisto à citar Montaigne, o que, aliás, pretendo fazer bastante neste espaço, pois se trata de um dos meus autores de cabeçeira:
"Dirão que tomar a si mesmo como assunto de uma obra é desculpável, mas somente quando quem o faz é um indivíduo excepcional e célebre, cuja reputação pode inspirar a alguém o desejo de conhecê-lo. É certo, e eu o reconheço, que para ver um homem que não se distingue do comum um artesão não erguerá sequer os olhos, quando para assistir à chegada de um grande personagem abandonará sua oficina ou sua loja. Não assenta bem a ninguém dar-se a conhecer, senão àqueles que têm como provocar imitadores, e cuja vida e opinião se apresentem como modelares".

Ah, se Montaigne pudesse nos fazer um visita rápida, perceberia que nesta nossa época de culto à celebridade, não é necessário ser nenhum personagem modelar para granjear o fascinio de milhares de admiradores. Mas, voltando ao século XVI, Montaigne, no mesmo ensaio, Do Desmentido, escreve:
"Só tenho contato com o público porque me sirvo da escrita impressa, mais rápida e mais cômoda do que a escrita comum; em compensação, talvez o papel que eu lhe forneço impeça que algum dia uma porção de manteiga se deteriore no mercado:"dessa maneira os atuns e as azeitonas não carecerão de invólucros" (Marcial). "Fornecerei às sardinhas uma vestimenta em que estarão à vontade" (Cícero)".

Sim, sim, é provável que atribuamos a nós próprios uma importância maior do que de fato temos, como se tivéssemos uma vida pública cuja descrição merecesse a consideração alheia; e talvez um diário expresse essa pretensão ingênua de que nossa nossa existência transcenda seus próprios limites.
Mas posso superar todas essas considerações se me dispuser a imaginar o diário como uma espécie de classificador pessoal de idéias e proposições, na capa do qual possamos colar uma etiqueta com os dizeres: A Quem Interessar Possa. Na verdade, sempre me faltou capacidade para organizar as minhas idéias, para filhiá-las. E uma idéia solta geralmente nos escapa, ou passa a conviver anarquicamente com outras de gênero diverso, até perder vitalidade ou, digamos, perder a hora. Talvez um diário seja apropriado para coordenar um pouco esse convívio inquieto das idéias.