Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Distâncias, Procedimento e Registro Flutuante

DISTÂNCIAS

Olho para o sol
no extremo
da vertical.
Olho, no oposto
Ponto,
A minha sombra
Residual.
O sol.
A minha sombra.
A minha sombra
O sol:

Há um nada entre eles.

Olho os ponteiros
Do relógio,
O das horas,
O dos minutos
(Aquiles e a tartaruga).
O ponteiro
Das horas.
O ponteiro
Dos minutos:

Há um nada entre eles.


PROCEDIMENTO

Primeiro é o registro súbito,
Fotográfico,
De um pássaro aguardado
Que não se sabe de onde vem.
Ou, grosso-modo, um esboço
De pássaro deposto em pouso.

Prendo-o na gaiola da imagem
Para reformulá-lo.

Pois a um pássaro solto
Não se pode modificar.

Mas, se já é perfeito o pássaro
Para ocupar as alturas,
Por que alterá-lo?

Trata-se de outra forma de voar.


REGISTRO FLUTUANTE

Encontrei num caderno amarelado
A letra trêmula de meu pai:
Uma anotação banal -
Lista da feira -
De um dia também banal.

Porque era meu pai falecido
Aquela escrita se desgrudara
Daquele dia.

Como se fora aquele um dia virgem,
Habitado por um só ser flutuante
Cujos pés não aceitassem o alvitre das horas,
Cujas mãos não se maculassem nos objetos,
Cujos olhos não ocupassem um raio de sol.

Algum dia terá tal resplendor
Um só dos meus poemas?


Escher, Liberação

9 comentários:

  1. Maravilhoso Marcantonio, a poesia disse bem dos pássaros, "um passaro solto. Não se pode modificar.". Li algumas vezes e vi que tuas palavras resplandecem sim, como pássaros em liberação! beijos

    ResponderExcluir
  2. .. é, agora que já sei o procedimento, quem sabe aprendo voar ? rs

    Adorei tudo por aqui, volto depois pra curtir um pouco mais.

    Abs

    ResponderExcluir
  3. De tanto ver o nada até já gosto dele...

    ResponderExcluir
  4. 3 - a interrogação final do terceiro poema - terceira margem - me fez lembrar Borges e o infinito, a eternidade da palavra
    2 - uma forma de voar pelas sílabas é o canto e também o desencanto - a variação mais próxima do silencio
    1 - será que um Zenão pós-moderno calcularia a distancia entre as palavras - para chegar ao verso B teria-se que alcançar a metade, mas para chegar a metade outra metade - batalha de quem campeia o inóspito dos vocábulos,


    abração

    ResponderExcluir
  5. "Pois a um pássaro solto
    Não se pode modificar.

    Mas, se já é perfeito o pássaro
    Para ocupar as alturas,
    Por que alterá-lo?

    Trata-se de outra forma de voar."

    Eita... Esse aqui vai pro meu mural, Marquinho!!!
    Lindo demais.

    Beijo.

    ResponderExcluir
  6. Te sinto como uma ave de arribação rasgando o espaço de nossa mente, a fecundar não apenas
    Poesia, mas todo um ideário para profundas reflexões!

    Beijo GRandEE

    P.S: adorei teus comentários no blog :))

    ResponderExcluir
  7. Belíssimo, Marcantonio!

    Tres registros que flutuarão para sempre no espaço, a partir de agora.

    O "REGISTRO FLUTUANTE" é um hino de louvor.

    Parabéns, poeta!

    Beijos

    Mirze

    ResponderExcluir
  8. Inquietante beleza sempre... Beleza insólita muitas vees. Tudo belo aqui. Eu vou passando. Mas tenho lido o Marcantonio sempre que posso. O azul tornou-se definitivo já. E o diário está com uma bela nova cara e mais...Marcantonio! O de agora, mutável que você é.

    abraços,

    ResponderExcluir
  9. Após um passeio nessa tríade poética, chego ao final percebendo nitidamente que são fragmentos de um só propósito.
    Bela composição, Marcantonio.
    Um abraço.

    ResponderExcluir