Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Três Poemas no Início de Novembro



ADVERSA

A palavra víscera
É importantíssima,
A palavra víscera.

É palavra avessa
Ao sol mais puro.
É palavra espessa,
Conduto escuro.

É tão importuna
A palavra víscera,
Não se coaduna
Com pele e carícia.

A palavra víscera
Tem oculta face
Que se pronuncia
Invasiva, rapace.

A palavra víscera
Não é gregária:
Não tem convívio,
Coisa contrária.

A palavra víscera
Faz-se sevícia
Aos ouvidos sãos:
É cirúrgica e dura,
Requer sutura
E cauterização.

E mais se oculta
A palavra víscera,
Reativa obliteração,

Se o mau poeta
A exterioriza
Pelo eufemismo
Da conotação.


ONDAS INTERNAS

O que me aterroriza tem sempre a feição
De uma perda de humanidade,
De fim do mundo que me transcende;
Uma invasão de oceano afogando os signos.

Por isso me aplico tanto em sonhar,
Para resgatar desse líquido vácuo
Uma coleção de imagens humanas.

A água mina do fundo lacerado do barco,
E eu, com uma canequinha,
Faço ondas tremendas do lado de dentro.


NEGAR TRÊS VEZES

Poesia, tu és tão inútil!
E me envergonhas.
Quisera negar-te três vezes.

Acaba de cantar o galo pragmático;
E o meu dia, que pertence ao mundo,
Austero se inicia.

Guardo-te na mala, poesia,
Como se foras um boneco de ventríloquo.
























Da Vinci, Desenho Anatômico.


* Postei hoje um poema no Mínimo Ajuste, aqui.

19 comentários:

  1. e torna a vida enfadonha
    esse transbordamento
    de janelas abertas

    (sabemos silenciosamente
    que o vento não explica
    a queda do vaso
    ou por que a janela
    bateu tão forte
    sangrando nossos dedos)
    ...

    Bravo, poeta.

    Forte abraço,
    amigo.

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  2. Caralho, Marcantonio! Dessa vez não tem como o mês começar ruim. Acabei de tomar o Adversa como o melhor texto que li em seu Diário Extrovertido. Já o Negar três vezes deixou um gostinho de João Cabral de Melo Neto, na fase do Antiode, no ar. Grande abraço, compadre.

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  3. És um grande ventríloquo com uma canequinha nas mãos a fazer ondas "externas" de ótima poesia, Marcantonio. Muito bom!

    Abraços, poeta!

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  4. o medo é a perda da humanidade - já tão perdida em alguns cantos - muito bom os poemas, principalmente o "ondas internas", é que o mar nos diz tanto...beijo!

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  5. adversa atesta a pompa das águas submersas, ondas internas são de remexer areias...

    não te nego três vezes, nem se a canoa virar!

    beijo, (mar)co.

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  6. Espero que sua poesia te engane e salte da mala antes de vc fechar, rs. Li seu lindo poema também no Mínimo Ajuste, inclusive, sou seguidora do blog porque vc e Andrea de Godoy escrevem nele.

    Beijo, querido.

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  7. a palavra víscera me lembra alvíssaras e devem ser irmãs, como todos os sonhos são irmãos de estranhas linhagens e essas ondas que nos habitam florescem nos trigais do amanhecer, da poesia quem nunca a negou atire o primeiro verso,


    abração

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  8. Do culto ao oculto, jamais vi ou lí vísceras assim tão belas...A Lâmina da palavra aquí expôs o seu melhor.
    São inúmeras as possibilidades quando se tem destreza.

    abraços e desejos de que seu 'novembro' seja vívido e pleno de inspiração e poesia.

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  9. Dizer o quê? Sua escrita é sempre surpreendente e me pega de jeito, por uma ou por outra razão. Essas ondas internas me arremessaram a mim mesma!Muito bom!
    Abraços,

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  10. Novembro começa alvissarreiro na ponta de lança da tua poética.
    Bravo, Marcantonio.
    Abraço grande.

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  11. Marcantonio!

    Como é usual, todos os poemas belíssimos.
    Particularmente uso a palavra visceral, no sentido de: "sair do mais obscuro sentimento", não sabia desse fenômeno que causa a palavra.

    Que não só novembro, mas todos os dias possamos te ler!

    Bravo, POETA!

    Mirze

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  12. tão bom!

    adorei "ONDAS INTERNAS"... me tocou profundamente...

    um beijo,

    Talita
    História da minha alma

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  13. Você e sua canequinha conseguem fazer um tsunami poético.
    Bom demais!
    Gostei muito do seu comentário na minha casinha.
    Indo correndo para o Mínimo Ajuste.

    bj
    Rossana

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  14. adorei este seu poema, consegui sentir as minhas visceras, em rebuliço.

    obrigada pelas suas visitas e comentários no blogue, para mim, valem todas as letras do tal do alfabeto.

    que os nemos se consigam escrever, pelo menos assim,

    beijo
    Laura

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  15. Adversa tem um traço de João Cabral. Fascinante.
    Os três poemas são excelentes e guardam uma ressonância que é a marca do poeta.

    Beijo pra você.

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  16. EGAR TRÊS VEZES

    Poesia, tu és tão inútil!
    E me envergonhas.
    Quisera negar-te três vezes.

    Acaba de cantar o galo pragmático;
    E o meu dia, que pertence ao mundo,
    Austero se inicia.

    Guardo-te na mala, poesia,
    Como se foras um boneco de ventríloquo.


    Depois desta, ponha a coroa de louros na cabeça, deite na cama, fique esperando o prêmio nobel... Muito muito muito muito linda. Não sei o que fazer com ela, Marcantonio!

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  17. Como diria o poeta Matuto Marginal: viva as tripas.

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  18. O primeiro poema é sensacional, não que não tenha gostado dos outros, gostei também, mas o primeiro, o "Adversa" está em um nível superior. Abraços!

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  19. "Por isso me aplico tanto em sonhar,
    Para resgatar desse líquido vácuo
    Uma coleção de imagens humanas."



    Ps: Não guarde na mala a poesia, até os ventrículos precisam de ar... ;-)

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