Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 30 de maio de 2010

Rosáceas

Se a escrita não for essa pomba que parte,
garrafa alada de um náufrago
que se afoga na própria saliva,
para que escrever?

Feito um monge,
grafitando as paredes da cela,
para deixar pistas
de homicídios não cometidos?

Ou pior, pior, seria escrever
esse entulhar o chão ao meu redor
com bilhetes amarfanhados
de um suicida latente
como se fossem esses cravos de papel branco
os únicos resíduos de mim?

Não!

Escrever abrindo rosáceas altas
nas paredes com a espessura do medo
de viver,
para que uma luz insuspeita
vaze por elas
criando fímbrias de cores pagãs
na luz branca de todo dia.























                 Imagem retirada daqui.

A Praia e a Garrafa do Náufrago

(1) Como escapar ao formalismo, essa instância produtora de formas vazias, fórmulas artificiais e categorias rígidas, que pretende sempre desacreditar qualquer possibilidade de uma autenticidade divergente? Decretou-se que a própria divergência é uma mera fórmula! Instaurou-se a convicção de que tudo já foi dito e não há como defender a linguagem sem nela naufragar ou se apropriar da palavra sem ficar preso a ela.

(2) Ó universo de preceitos e normas, como escapar de ti, da tua fome saturada? Como dar as costas às tuas constelações artificialmente ordenadas? Seguir como um louco monologando em línguas ressuscitadas? Como separar do medo de me perder, o sacrílego desejo de me encontrar? Ó congestionadas vias! Para que me encontrar se é perdido que, talvez, eu melhor me disponha?

(3) Como manter a espontaneidade sem que ela tenha de ser fingida? Já trago dentro de mim meus próprios labirintos restritivos pelos quais vagueia a minha humana busca. Como unir o simples anseio de viver com o puro desejo de criar? Unir arte e existência não parece ser possível senão desmistificando as duas, corrompidas que são pelo excesso de racionalidade que visa aquilo que não pode ser visado.

(4) Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

(5) Como a arte nos impõe essa ilusão de que ao domarmos sua linguagem, domamos também nossos destinos?

(6) Nada proponho. Tudo proponho. Como artista, eu me pergunto se é possível indagar com tal ansiedade de abarcar todo o universo e, depois…Calar? Talvez como uma pérola que pretenda brilhar dentro da ostra fechada e escura.

(7) Todos estão sempre tão propensos a procurar apressadamente por si mesmos, e dispostos a se assemelharem de modo indulgente a si próprios… Difícil é ter coragem para buscar em si mesmo um outro, ou um ogro.

(8) No absurdo do vazio, algumas respostas inventam suas improcedentes perguntas.

(9) Tudo o que faço é um símbolo da minha própria esperança, tal como a garrafa lançada ao mar com uma mensagem é para o náufrago. Mas posso andar na praia apenas ouvindo o discurso definitivo das ondas…

(10) O consenso é uma fênix que sempre renasce das cinzas do inconformismo.

(11) Destruir voluntariamente o melhor da própria criação teria como conseqüência um arrependimento profundo ou o surpreendente prazer advindo de um ato de extrema confiança em si mesmo?

(12) É um sim ou um não, o resto vem por conta. Você quer navegar naquele oceano que se estende a partir de você até o mundo, construindo você mesmo seus próprios instrumentos de navegação, seu astrolábio canhestro, sua bússola sem norte? Então se prepare para o risco de ficar a deriva. No entanto, quem sabe se justamente por estar a deriva você não venha a dar em um território desconhecido e possa, enfim, gritar: terna vista!



















Intervenção sobre Livro - Marcantonio


* Texto postado antes no meu Cadernos de Arte.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Sem Ciência

terça-feira, 25 de maio de 2010

Três Poemas Curtos e Uma Tira Sem Imagens



POR ACASO

Estou cansado de tanto
Descanso.
Por acaso o acaso também me cansa,
E o descaso
Que avança
Projetado
Na ponta da lança
Deste eu-soldado.


LONGEVIDADE

               Para R. G. C.

A luz da tarde torna os seus cabelos
Tão líquidos.
Eles me arrancam do peito uma palavra
Que neles desliza como carícia entremeada.
Que palavra é essa?
Não sei dizê-la.
Mas é um consentimento a um lampejo
De uma ternura tão longeva!
Minha doce eva,
Creio que inauguramos o infinito.


MINHAS CONTAS

Talvez o que reste de mim
seja um cordão desfeito
de contas vencidas
e incongruentes,
jogadas,
numa praça esquecida,
aos pombos inapetentes.


HISTORINHA

-Por que você não mais escreve poesia?

-Estou muito ocupado em viver.

-Mas, e nas horas vagas?

-É quando estou mais ocupado ainda em viver.

(Bem feito! Que anjinho gauche foi me soprar essa pergunta?)
























Adão e Eva (1507), óleo s/ madeira, de  Dürer. 

domingo, 23 de maio de 2010

Torre, Entretanto, Pó



DESTA TORRE

Do alto desta torre-esconderijo,
ou desta torre de observação
ou desta torre de comunicação
(ermida de onde aceno)
o mundo é mesmo bonito,
mas parece tão pequeno
                    tão pequeno
                                   o


ENTRETANTO


Não sei se pego da caneta
ou se recorro ao pincel.

Não sei se me lanço à tela
ou se me entranho no papel.

Entretanto,
esse diurno céu.


DO PÓ AO PÓ


Por que falo, de sol
a sol,
tão solenemente,
se fui feito de pó
levantado,
mas (de)poente?


















Monotipia s/ título - Marcantonio

Para ver outras imagens minhas: Cadernos de Arte
                                

Descobrir ou Inventar

Entendi, enfim, que não se trata de mudar a forma das coisas, mas de apurar a percepção. Nada mudará essencialmente, senão a forma como a tudo percebo.

Se há diferença entre descoberta e invenção, a minha estratégia é me descobrir como se me inventasse.

A marionete que adquiri consciência, não rompe os fios que a movimentam; passa a perceber a si mesma como sendo a razão da cena. A dança só se encena no dançarino.

Um rio. Um barco. Neste, eu mesmo com os remos nas mãos. Grandes espelhos ao longo das margens: o rio movimenta o barco, movo-me com o barco enquanto o movimento, e movo-me nas margens se flagro a mim mesmo de lá me observando.

















Sem Título - Aquarela e lápis aquarelável - Marcantonio

Especulações Sobre o Fim de Ícaro

1

Antes de cair no mar,
Ícaro teve a tardia idéia
de duas asas reservas.

2

Antes de cair no mar,
Ícaro vislumbrou
os segurados anjos cristãos.

3

Antes de cair no mar,
Ícaro viu passar a própria vida
em labirintos.

4

Antes de cair no mar,
Ícaro sonhou
ser um peixe voador.

5

Antes de cair no mar,
Ícaro gritou
pelo pai, na falta da mãe.

6

Antes de cair no mar,
Ícaro transigiu:
- Quem dera fosse noite!

7

Antes de cair no mar,
Ícaro apelou a um deus
que o controlasse remotamente.

8

Antes de cair no mar
Ícaro caiu
em si.

9

Antes de cair no mar
Ícaro perguntou:
- Comigo se afogarão as estrelas?

10

O pânico de Ícaro
cessou
assim que ele aspirou a água fria.























Rubens - A Queda de Ícaro

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Mais Três Poemas



ECOS REPLICADORES


To see a world in a grain of sand
And a heaven in a wild flower
Hold infinity in the palm of your hand
And eternity in an hour.

(William Blake)


Ver o mundo como um grão na bateia.
E a flor silvestre como flor silvestre que se confessa ao chão.
O infinito: um ácido que corrói a palma da tua mão
Enquanto o instante sopra a eternidade feito areia.



AFAGOS

1

Não é que eu não possa
Existir sem você, não.
Fato é que existo COM você:
Decidi enxergar o mundo
Com nossos quatro olhos.

2

Dia de exílio intramuros.
Estou cansado dessa solidão azul.
O ar é tão denso que chega a me ocultar
Na própria transparência.
Não consigo avistar novas paisagens.
Dos caminhos abdico
Se me faltam os seus sinais.

3

O meu melhor sorriso
É sempre uma resposta
A um súbito sorriso seu:
Aparição de borboleta luzidia
Que entrasse na casa, pela manhã.



CANTIGA PARA ME RETRATAR

Cresceu pobre pobre pobre sem sequer saber de si
Ainda é pobre pobre pobre do saber de si.



















William Blake - Newton -  Aquarela

terça-feira, 18 de maio de 2010

Três Poemas de Maio



SEM ERRATA

Sou e serei sempre errático.
A economia de palavras e linhas,
Amealhadas sob o colchão,
Paga a minha entrada, pelos fundos,
No fantástico show do dia-dia.

Enfrento o aluvião de luz
Usando óculos escuros,
Meus guias noturnos.

Nas vias públicas
Transporto um porão portátil
Como guarda-sol.

Antes de sair,
exponho o avesso
Dos bolsos,
E afino o silêncio
Da minha nuca.

(Minhas pontes falhas
São todas desgarradas do chão.)

Não cumpro o contrato
De não observar os bastidores da vida:
Velho precoce, espio a nudez pálida
Dessa suzana desinibida.


OUTROS ARES

Dá-se a vertigem assim:
Atmosferas intermitentes
Ocorrem dentro de mim:
Eu (trans)contido nelas
Como núcleo dessas células.

Uma encruzilhada de perfumes,
Outra nuance da incandescência
Solar,
Uma nesga marinha esverdeada,
Esse tanto bastará
Para unir duas inexistências
Com a mesma linha pontilhada.


CONTEMPORÂNEOS

Nos rostos que me acompanham
Eu encontro os sucedâneos
Das minhas próprias perdas.
Serão outros ou são esses
Os meus contemporâneos
Em caminhos e atitudes,
Se em seus espelhos cutâneos
Já não mostram o instantâneo
Reflexo da juventude
Com ânimo e fortaleza?

Consumiram tempo igual
Ao que tenho consumido?
Disso não tenho certeza.

















     Tintoretto - Suzana e os Velhos - Óleo sobre tela - 1555

domingo, 16 de maio de 2010

Poema de Amor

Minha querida:
Sou tão inábil para poemas de amor.
Poemas de amor são tão egoísticos.
Se eu tirasse uma foto tua
Já me bastaria como poema de amor.
Mas tu perceberias os meus olhos
Por trás da câmera fria?
Além do mais, a foto não me incluiria.
Como, então, ostentaria o meu amor?
Eu não te disse que poemas de amor
São sempre egoísticos?

Um poema de amor teria que incluir a nós dois.
Mas se tento descrever-te
Uso tanto o pronome pessoal eu
E o possessivo minha!
De fato, eu te disse que poemas de amor
São egoísticos.
Algo como enviar um cartão postal
Ao próprio remetente.
Por que recriaria a paisagem
Se a vejo da janela aberta?

Se me dirigisse a ti como a uma deusa
Colocaria entre nós todo o universo
E isso desagradaria a este pecador egoísta.
Não é o que digo? Poema de amor
É coisa egoística.

Como fazer, portanto, um poema de amor
Que não seja egoístico?
Poderíamos escrevê-lo a quatro mãos.
Sim, mas talvez as nossas mãos entrelaçadas
Estrangulassem o poema,
Desobrigando-se de terminá-lo...
Acaso seria esse o ideal poema de amor:
Quatro mãos decalcadas na matéria viva
Ignorando o redundante poema... de amor?

A possibilidade de fazer do amor um poema
Faz calar o meu poema de amor egoístico.
Então? Concordas que todo poema de amor
É um desperdício egoístico?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Paraíso Sazonal

Ontem devo ter feito a sesta
Sob a Árvore da Vida
No centro de algum paraíso sazonal.

Transpus o vau para a margem mais alta
Do meu cotidiano.
Eu vinha de jornadas em círculos,
Caixeiro viajante por estações de perda,
A mala ensebada,
Entulhada de impropriedades,
Os sapatos nublados de poeira bárbara.
Já havia ferrado os cascos do passado
E lhe aparado a crina longa
Para que desembestasse longe de mim.
Também aprisionara num vidro com tampa
O futuro encarnado em besouro pagão,
Ainda não catalogado com nome em latim.
Talvez mais tarde o espete com alfinete inoxidável
Na minha coleção de excentricidades.

Não vi querubins e espadas inflamáveis
Ao redor da Árvore da Vida.
Vista de baixo, sua copa era densa e ampla.
Os galhos nela sumiam como colunas
Sugadas por uma névoa verde,
Com incrustações de minúsculos faróis,
Cuja luz incidia sobre as ranhuras das folhas
Relampejando sucessivas e breves auroras neurônicas.
Logo a cor verde orvalhava meus cabelos
E escorria pelas minhas têmporas amolecidas.

Sobre o galho mais baixo da árvore
Havia um iguana furta-cor paralisado
Mas com olhos girantes e acesos
Como diodos emissores de luz
Para avisar que ele estava em stand by.

Eu  perdera nesse ponto, a habitual vontade
De mandar tanta coisa à merda,
Simplesmente porque já esquecera o que merda fosse.
O meu regato diário fizera-se transparente
Esvaziado de minúcias
E agora repleto de peixes críveis
Que alinhavavam a superfície d’água
Como que dotados para viver nos dois territórios.

E as nuvens? Sobre um sudário virgem e azul,
Elas pareciam os balões de pensamentos das histórias
Em quadrinhos, cheias de uma escrita ilegível,
E eram trocadas como slides velozes.
Eu estava me lixando para o fato
De que a sua leitura me escapasse,
Como a luz dos olhos de Homero.

Que eu fosse analfabeto!
Pois não era verdade que todas as coisas
Aprenderam a falar
Enquanto eu próprio perdia as palavras
E os nomes de todos os objetos,
Caídos da minha fronte como pétalas murchas?
Mesmo os pássaros mais remotos
Podiam, então, dizer o meu nome
Em uma língua que eu nunca aprendera
E sempre soubera:
Tal como diriam ”céu”
Para o espaço que ocupavam
Sem saber que não era o solo.
E as pedras invertebradas, os insetos desocupados,
As formigas comungantes,
Os ruminantes que pastavam compenetrados,
A grama que se deitava como cabelos lisos
E o iguana furta-cor,
Todos sabiam de mim enquanto me ignoravam.

A sombra da Árvore da Vida
Era uma veladura densa sobre toda distinção.
E ali, sob sua guarda,
Eu me transformara numa câmera oculta,
Um só olhar, sereno e automático,
Postado atrás de mim mesmo e me incluindo
Na indistinção.

Mas isso foi ontem, e expirou.
E se recordo aqui e agora,
É porque triste já me distingo
Do todo momentâneo que fui.

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Para ver outras imagens minhas: Cadernos de Arte

terça-feira, 11 de maio de 2010

Um Desdobramento



O FUNDO, A FACE

O que em mim
vai por dentro,
ocluso, oculto,
o poema devora.
O que em mim
é silêncio denso
no poema se arvora
em ramas sonoras.

O que em mim
é caixa interna,
canopo, relicário,
no poema é lápide,
epitáfio vário.
O que em mim
é amplo fosso,
no poema é face,
escorço.
O que retenho,
lenha,
o poema inflama
e resenha
em chamas.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Mais Três Poemas



FALAR OU CALAR

O que o poeta fala
é um prato só
que se divide
entre muitas fomes.

O que o poeta cala
é a sede vasta
que  desidrata,
é o pão do avesso
que ele próprio come.


LOCALIZAÇÃO

O poema pode estar
próximo ao chão,
planta enviesada
que o vento não inclina
nem a luz inflama.

Ou pode estar trepado
no topo de um arranha-céu,
qual King-Kong imortal,
como um macaco amoral
a fazer caretas
para a hipocrisia humana.


ADÁGIO

Um poema
que, sendo transe,
é também hábito,

Salvaguardado
o lema
de que o hábito sozinho
não faz o poema.

Recitativo

:estende-se a campina desolada: e eu aprisionado na sua ausência de limites: os meus olhos estóicos não encontram obstáculos: não há uma elevação sequer para transpor: tudo se encontra ao rés do chão: nada é propriamente verde ou apropriadamente ocre: há apenas um verde fingido: verde-indo-embora sobre terra cinza ou marmórea: flores? tão pequenas que mal se notam: como animaizinhos rasteiros: não há lírios rosas ou outras flores supostamente poéticas: nem convém procurá-las ou pensar nelas: há aqui um silêncio tão profundo que incorpora os uivos gestuais do vento: e as miudezas ressecadas do chão rolam sem rangidos: os gravetinhos míticos: as folhinhas metafóricas: as sedentárias raízes teóricas: os ossinhos filosóficos: e fragmentos de cascos de quelônios gramaticais: receio estar perdendo a audição: ter os ouvidos selados: o sol imóvel sempre à pino: mas com raios filtrados de paisagens pintadas a mão livre: a minha pele os suporta bem mas os meus pés estão cansados de pisotear a sombra exígua do meu corpo: não há noite portanto e se houvesse eu enlouqueceria de frio mental: mas encontro grutas que trazem em si noites subterrâneas: não as freqüento muito porque lá me ponho a esboçar deuses inativos e bidimensionais incapazes de ressuscitar outras vozes: resta-me falar comigo mesmo: me fingir de outro: e me relatar as não-ocorrências num monólogo inabdicável: reto: um enorme fio com nós acumulados correspondentes a breves ilusões de ser ouvido: falo então e falo em silêncio enquanto caminho quase sem parar: andar: esquadrinhar: dizer: me desdizer: e quanto mais ando mais se regenera a plenitude da campina aterradora: a campina onipresente: a planura óbvia repetindo-se a si mesma com irônica crueldade na indistinção de um único e interminável dia de sol frio e exausto entronizado sobre a minha cabeça nesse céu intoleravelmente limpo de nuvens: de estrelas: de deuses: de anjos anunciadores: de pássaros: de insetos de: de: de nuances: andar: andar recitativo: andante: eis tudo o que há por fazer: andar/falar: estende-se a campina desolada e eu aprisionado nela:

       Monotipia s/ Título - Marcantonio

Peripatético


Deve haver algo de peripatético no processo como algumas idéias obsessivas me ocorrem. Talvez o ato de caminhar esteja para a propulsão do meu pensamento por sendas extravagantes, assim como manivelas e mecanismos de dar corda estavam para os antigos brinquedos móveis ou as graciosas caixinhas de música.

Não disponho de um bosque ou jardim de Apolo Lykeios próprio para as minhas “especulações”. Costumo ser acometido por elas na via pública, justamente quando saio para alguma obrigação de ordem prática, geralmente maçante. Basta dar os primeiros passos da caminhada para que me ocorra um tema e logo me ponha a desenvolvê-lo como um monólogo. Se o que resulta parece valer à pena, é preciso repetir, sublinhar mentalmente para diminuir as possibilidades de que tudo se perca no momento em que, ao chegar ao meu destino, eu tenha de voltar à “realidade” cotidiana.

Mas, esse risco de esquecer uma informação supostamente preciosa é, por mais estranho que possa parecer, algo excitante e educativo. Afinal, por que as minhas idéias deveriam ter o privilégio, que a minha vida não possui, de se por a salvo da fatalidade e do conseqüente esquecimento? De forma que me entrego ao jogo da casualidade; mesmo porque, creio que há dois tipos gerais de idéias: aquelas que são quase orgânicas, de tanto que parecem fazer parte da nossa estrutura, como essenciais ao metabolismo; e as demais, que se comportam como peças de vestuário, nós as vestimos e despimos naturalmente. A possibilidade de esquecimento nos ajuda a separar umas das outras: se for uma idéia importante, ao menos para mim, ela será resgatada, pois há um vazio que a requisita. No mais, que falta irreparável poderia me fazer um par de meias ou uma camisa bem talhada, por maior que fosse o apreço circunstancial que eu lhes dedicasse?

Agora, se o tipo de lugar por onde caminho pudesse influir na natureza dessas idéias súbitas e na sua posterior comunicação, nesse caso gostaria de caminhar na praia. Talvez uma praia cujas características estivessem entre as próprias das praias urbanas e das praias desertas, quase selvagens. Pois, se não me agrada falar daquilo de que todos falam com uniforme freqüência, também não almejo dizer algo que ninguém queira ouvir.
















Marinha - José Pancetti

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Três Poemas



1- Dar as caras.

[ Aqui jaz o meu ressentimento ]

Enquanto fui
oferecer a outra face
ao vento.


2- Ilusão

Agrada-me imaginar,
no avesso do nada,
sensores a captar
o insone atrito
das palavras que alinho
aflito.


3- Em fuga

Se o poeta é neutro,
o poema é vário.

E como inventa,
fugitivo,
nas bordas do mapa,
outro itinerário!

terça-feira, 4 de maio de 2010

Radiografia



Então, a aurora.
Folha de rosto
sem ex-libris.


Estranhamente bela,
ponto mais claro
de uma chapa
radiográfica.

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Outros trabalhos meus em: Cadernos de Arte

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Dois Poemas



ELA OU ELA MESMA

Ela não é
exatamente assim
como a descrevo,
posto que à sua discrição
circunscrevo-me.

E eu, que apenas sou,
oitenta vezes oito,
carne, 
na insaciedade
deste desejo afoito,
hei de deixá-la se entranhar,
sem pressa, lenta,
na paisagem verídica
que a escrita inventa.


POUCO OU NADA

A dor não era a própria Dor.
Então, inconsistente era o riso.
Aquilo que o tempo transmudou
Na origem já não era preciso?

O caminho não fora franqueado,
No porto não pudera apear.
O vôo cintilante das gaivotas
Fazia todo o céu oscilar.

O rastro numérico das coisas
Que ganho deixara ou deixará?
Somaram-se as asas erradias
Das aves que não podem voar.

De tudo que fora necessário,
Pouco, quase nada consistiu:
Um presságio extraordinário
Que senti... Consenti. Quem sentiu?

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Exercício Básico

1

Escolho uma das grandes causas ou crenças, apenas para que eu possa abandoná-la solenemente, dizendo: “ O meu dia,  em seus efeitos, tem primazia sobre as outras ilusões”. O desertor quer reencontrar a vida anterior à grande causa. Seria isso uma causa pessoal? Não, apenas um exercício básico.

2

Como indivíduo trago em mim mesmo minha própria universalidade: essa fatalidade, essa habilitação para morrer segredando algo inexprimível. O pensamento objetivo pretende me abarcar como se eu já estivesse lá, em algum ponto anterior a mim mesmo. Não, eu não estava. Era apenas algo semelhante.

3

O meu dia, sempre contemporâneo, não migrará para o amanhã. Mesmo que eu viva cem anos, ou morra precocemente; e intentem a biografia do meu anonimato.

4

Jamais me adequarei ao modelo geral. Eu sei disso, mas o outro o ignora. Empurram-me, espremem as minhas ordinárias (des)vivências  para que caibam no tubo de ensaio. Mas, sobro. Sobro abarrotado de mim.

5

As pedras de qualquer ruína me confidenciam que só se recordam de serem pedras amorfas. Não herdaram a memória do formato a que foram submetidas.

6

Menosprezamos a matéria inconformada. Achamos banal a areia, mas o vidro esplende. E, mais acima, os vitrais transpiram luzes inventadas. Se dotarmos a matéria de um corpo, diremos que essa forma era o espírito que a própria matéria aguardava. Quando tal forma começar a se arruinar definitivamente, recordaremos sua genealogia, restauraremos seu espírito, inventando uma memória da eternidade. Assim as ruínas se tornam símbolos da permanência.

















Monotipia s/ título - Marcantonio