Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Exercício Básico

1

Escolho uma das grandes causas ou crenças, apenas para que eu possa abandoná-la solenemente, dizendo: “ O meu dia,  em seus efeitos, tem primazia sobre as outras ilusões”. O desertor quer reencontrar a vida anterior à grande causa. Seria isso uma causa pessoal? Não, apenas um exercício básico.

2

Como indivíduo trago em mim mesmo minha própria universalidade: essa fatalidade, essa habilitação para morrer segredando algo inexprimível. O pensamento objetivo pretende me abarcar como se eu já estivesse lá, em algum ponto anterior a mim mesmo. Não, eu não estava. Era apenas algo semelhante.

3

O meu dia, sempre contemporâneo, não migrará para o amanhã. Mesmo que eu viva cem anos, ou morra precocemente; e intentem a biografia do meu anonimato.

4

Jamais me adequarei ao modelo geral. Eu sei disso, mas o outro o ignora. Empurram-me, espremem as minhas ordinárias (des)vivências  para que caibam no tubo de ensaio. Mas, sobro. Sobro abarrotado de mim.

5

As pedras de qualquer ruína me confidenciam que só se recordam de serem pedras amorfas. Não herdaram a memória do formato a que foram submetidas.

6

Menosprezamos a matéria inconformada. Achamos banal a areia, mas o vidro esplende. E, mais acima, os vitrais transpiram luzes inventadas. Se dotarmos a matéria de um corpo, diremos que essa forma era o espírito que a própria matéria aguardava. Quando tal forma começar a se arruinar definitivamente, recordaremos sua genealogia, restauraremos seu espírito, inventando uma memória da eternidade. Assim as ruínas se tornam símbolos da permanência.

















Monotipia s/ título - Marcantonio

4 comentários:

  1. Exercício básico para despertar a matéria, vivificá-la. As ruínas são espelhos da humanidade. abraço

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  2. Sem dúvida, Assis. E tantos querem se ver além desses espelhos!

    Abraço grande!

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  3. Vim descendo e lendo. Excelente o uso das palavras. O jogo. E gostei das imagens das monotipias, embora tenha que pesquisar o que venha a ser isso, qual técnica.
    Vou seguir descendo e lendo e vendo.

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  4. Dona Sra. Urtigão, obrigado. A monotipia é uma técnica de gravação pela qual se imprime um único exemplar: desenha-se com tinta sobre uma chapa de vidro e, enquanto a tinta está úmida, pressiona-se um papel sobre ela.

    Abraço.

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