Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Paraíso Sazonal

Ontem devo ter feito a sesta
Sob a Árvore da Vida
No centro de algum paraíso sazonal.

Transpus o vau para a margem mais alta
Do meu cotidiano.
Eu vinha de jornadas em círculos,
Caixeiro viajante por estações de perda,
A mala ensebada,
Entulhada de impropriedades,
Os sapatos nublados de poeira bárbara.
Já havia ferrado os cascos do passado
E lhe aparado a crina longa
Para que desembestasse longe de mim.
Também aprisionara num vidro com tampa
O futuro encarnado em besouro pagão,
Ainda não catalogado com nome em latim.
Talvez mais tarde o espete com alfinete inoxidável
Na minha coleção de excentricidades.

Não vi querubins e espadas inflamáveis
Ao redor da Árvore da Vida.
Vista de baixo, sua copa era densa e ampla.
Os galhos nela sumiam como colunas
Sugadas por uma névoa verde,
Com incrustações de minúsculos faróis,
Cuja luz incidia sobre as ranhuras das folhas
Relampejando sucessivas e breves auroras neurônicas.
Logo a cor verde orvalhava meus cabelos
E escorria pelas minhas têmporas amolecidas.

Sobre o galho mais baixo da árvore
Havia um iguana furta-cor paralisado
Mas com olhos girantes e acesos
Como diodos emissores de luz
Para avisar que ele estava em stand by.

Eu  perdera nesse ponto, a habitual vontade
De mandar tanta coisa à merda,
Simplesmente porque já esquecera o que merda fosse.
O meu regato diário fizera-se transparente
Esvaziado de minúcias
E agora repleto de peixes críveis
Que alinhavavam a superfície d’água
Como que dotados para viver nos dois territórios.

E as nuvens? Sobre um sudário virgem e azul,
Elas pareciam os balões de pensamentos das histórias
Em quadrinhos, cheias de uma escrita ilegível,
E eram trocadas como slides velozes.
Eu estava me lixando para o fato
De que a sua leitura me escapasse,
Como a luz dos olhos de Homero.

Que eu fosse analfabeto!
Pois não era verdade que todas as coisas
Aprenderam a falar
Enquanto eu próprio perdia as palavras
E os nomes de todos os objetos,
Caídos da minha fronte como pétalas murchas?
Mesmo os pássaros mais remotos
Podiam, então, dizer o meu nome
Em uma língua que eu nunca aprendera
E sempre soubera:
Tal como diriam ”céu”
Para o espaço que ocupavam
Sem saber que não era o solo.
E as pedras invertebradas, os insetos desocupados,
As formigas comungantes,
Os ruminantes que pastavam compenetrados,
A grama que se deitava como cabelos lisos
E o iguana furta-cor,
Todos sabiam de mim enquanto me ignoravam.

A sombra da Árvore da Vida
Era uma veladura densa sobre toda distinção.
E ali, sob sua guarda,
Eu me transformara numa câmera oculta,
Um só olhar, sereno e automático,
Postado atrás de mim mesmo e me incluindo
Na indistinção.

Mas isso foi ontem, e expirou.
E se recordo aqui e agora,
É porque triste já me distingo
Do todo momentâneo que fui.

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Para ver outras imagens minhas: Cadernos de Arte

10 comentários:

  1. Eu já li três vezes e estou aqui pensando se um dia eu vou escrever um poema dessa extensão literal e abstrata. E será que um dia vou usar palavras como 'diodo', 'incrustração', 'ruminantes'... Parafraseando de forma meio torta o meu querido amigo Fouad, quanto mais gente eu conheço, mais eu acho que não sirvo pra poesia!!!

    Belíssimo poema Marco, e cá entre nós, estive conferindo também o seu trabalho de arte. Que telas belíssimas! =)))

    Gostei demais da segunda parte. Um dia eu serei que terei uma coleção de excentricidades, não sei se haverá um besouro nela, mas pode até ser que aja. Eles estão tão desaparecidos da cidade grande, logo viram mesmo objeto raro para colecionador.

    Beijo-te com mto carinho. =*

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  2. Kênia, se você não servisse para poesia, o que se diria de mim, então? Eu aprecio tanto a poesia feita à sua moda. Afinal, uma aquarela de Klee pode ser muito mais significativa do que quilômetros de telas enviesadas.
    Obrigado pelo que você disse a respeito das minhas telas. É ali que me sinto mais seguro.
    Poxa, como é possível que você não tenha uma coleção de excentricidades? Quando tiver poderemos trocar algumas, pois já estou com muitas repetidas.

    Beijão.

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  3. "Pois não era verdade que todas as coisas
    Aprenderam a falar
    Enquanto eu próprio perdia as palavras
    E os nomes de todos os objetos,
    Caídos da minha fronte como pétalas murchas?"

    O passado posto a correr pra longe, o futuro aprisionado num frasco...

    E eu aqui, que gostaria de ter sabido dizer tudo isso, desse modo, tal qual foi dito.

    É isso, você me empresta voz nos seus poemas. Adivinha o que não tem nome e nomeia. Sinto-me íntima com essas palavras que não são minhas.
    Ah, gosto é muito de como você escreve, Marquinho: quando eu crescer quero ser assim!

    Beijos,
    Tânia

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  4. Caríssimo Marcantônio! Vc é um grande poeta! Essa poesia é excelente, meu caro! Eu simplesmente adorei!!

    Aplausos empolgados!! Bravo!

    Ps: Fico com a Kênia... (Ainda escreverei algo assim?)

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  5. Tânia, ao ler os versos que você destacou, tive a estranha sensação de que não eram meus. Pareciam de um poema autônomo. E me soaram bons.
    Se você não fala desse modo, sobre essas sensações e pensamentos, certamente o faz a sua maneira, senão de uma vez, em partes belas; senão agora, talvez ontem ou amanhã. Você me fez lembrar do Mario Quintana:

    “Qualquer ideia que te agrade
    Por isso mesmo… é tua.
    O autor nada mais fez que vestir a verdade
    Que dentro de ti se achava inteiramente nua”

    Só que você, com seu sentimento poético, sabe também vestir idéias que são suas-minhas-deles, enfim, nossas.

    Não queira crescer não, pois parece que os crescidos não são poetas.

    Beijo.

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  6. Pablo, obrigado. Mas tire esse adjetivo "grande" de perto deste ?poeta?. Pode-se pensar que a minha modéstia é forçada. Mas não é não. É insegurança mesmo. Afinal, promessa é dívida (rs.)Prefiro me colocar como quem faz ensaios. Se um desses ensaios reverbera nos outros, poxa, que bom! Aí dá para ter o orgulho de um acerto.

    Abração.

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  7. Acho que não fizeste a sesta, sonhaste mil e uma noites, e eis a odisséia. Grande abraço

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  8. Pois é, Assis, sesta extensa essa.

    Abração.

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  9. Oi Mai. É bom vê-la aqui novamente! Obrigado.

    Abraço.

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